Por Rosemberg Cariri(*)
Não é grande a distância que vai da lenda à História, do mito à realidade. Ambos se mesclam na confluência dos mesmos fatos e circunstâncias, apenas com as variantes definidoras da rotas trilhadas. O mito completa a História, e esta explicita aquele. Lendo os originais do livro do Padre Antônio Vieira, “Eu Sou a Mãe do Belo Amor”, acudiu-me à lembrança as estórias ouvidas, ainda na infância, sobre a lenda da Pedra da Batateira, e mais tarde se me aguçou a curiosidade de realizar pesquisas para aprofundamento da temática, por ser, sem dúvida, de alta relevância histórica e sociológica. Através de muitas crônicas históricas, sabe-se que os índios da chamada, Nação Cariri (Kariri ou Quiriri), os primitivos habitantes do Vale do Cariri e dos sertões nordestinos, do Rio São Francisco à Serra da Borborema, segundo versão de Capistrano de Abreu, provieram de “um lago encantado”, provavelmente do Amazonas ou Tocantins, sendo expulsos dessa região como do litoral pelos Tupinambás e Tupiniquins. Como se vê, a água era predominante na cultura desses silvícolas. Era tradição serem de uma bravura e ferocidade estupenda, e como símbolo e troféu dos seus feitos épicos e homéricos, se ornamentavam com dentes de tubarão, jacaré e onça. Os colonizadores, na sua gana predatória de domínio dos campos de criação de gado, tentaram eliminá-los nas chamadas “guerras justas”, cujos embates se alongaram de 1683 a 1713, nos cruentos e desumanos combates, conhecidos historicamente como “Confederação dos Cariris” ou a “Guerra dos Bárbaros”. E os conquistadores só conseguiram dominá-los e massacrá-los, graças ao esforço ponderável dos bandeirantes paulistas, em gente, armas e municiamento. Foi uma guerra de extermínio, autêntico genocídio, como se costumava realizar à revelia da lei e dos princípios éticos e humanitários, nas novas terras descobertas. Os remanescentes da tribo dos índios Cariris, alocados no Vale Caririense, trouxeram codificada, na sua sensibilidade, intuição e memória, a evocação da imensa Bacia Amazônica, das suas enchentes devastadoras, e não foi difícil à sua fértil imaginação idealizar que todo o Vale Caririense fosse um mar subterrâneo, com imenso caudal represado pela Pedra da Batateira; e precisamente onde hoje está situada a Matriz de Crato fosse a cama da baleia ou “Iara”, a Mãe das Águas, e que, um dia, a Pedra da Batateira rolaria, e todo o Vale Caririense seria inundado, e ninguém conseguiria sobreviver. Os primeiros missionários que catequizaram os índios Cariris, no primeiro quartel do século XVIII, deixaram como lembrança uma imagem de Nossa Senhora, esculpida em madeira, com 40 centímetros de altura, tendo o Menino Jesus nos braços, a quem deram o nome de “Mãe do Belo Amor”, para atenuar os temores fatídicos da lenda e substituir os maus presságios da “Mãe das Águas” pela proteção carinhosa e afetiva da “Mãe do Belo Amor”. E a imagem foi colocada exatamente sobre uma pedra do Rio Granjeiro, debaixo de um nicho de palha. Quando da instalação da Paróquia, mais tarde, a imagem passou a ser venerada com a invocação de Nossa Senhora da Penha, por duas circunstâncias históricas: o fato de ela ter sido colocada sobre uma rocha, e de que os capuchinhos que construíram a capela de palha, onde se encontra a Igreja-Catedral, eram de origem francesa, donde a singularidade denominação de “Nossa Senhora da Penha de França”. Outra versão lendária é a de que os índios vencidos, em lutas anteriores, haviam “encantado” (tampado) a grande nascente da Chapada do Araripe com a Pedra da Batateira, e que as águas acumuladas, no subsolo, acolhiam uma serpente sagrada, que faria deslocar a pedra, e todo o Vale do Cariri seria inundado, e que os índios Cariris voltariam a ser uma nação livre, senhores do mar, viveriam na paz e tranqüilidade de um Paraíso. A lenda ultrapassou as fronteiras do Cariri, e o cineasta Hermano Penna sustenta a tese de que Antônio Conselheiro, quando se separou de Joana Imaginária, vagava pelos sertões cearenses, tendo trabalhado nos engenhos de rapadura do Cariri, onde certamente colheu os elementos lendários da Pedra da Batateira. Tempos depois, o Conselheiro, seguido pelo grupo de camponeses espoliados dos latifúndios, pregava em pleno sertão adusto da Bahia “que o sertão ia virar mar”. E a profecia se cumpriu. Canudos hoje está coberto pelas águas, e a barragem de Sobradinho e Itaparica cobriram meio mundo. Fato curioso é que os índios Cariris de Mirandela e Saco do Morcego, catequizados pelos capuchinhos, contribuíram com 300 caboclos flecheiros na defesa da cidadela do Império do Belo-Monte: Canudos. O mito ainda hoje persiste na memória e imaginação do povo, mesclando-se com outras variantes, de tal forma que muita gente adventícia da Paraíba e Pernambuco, de descendência dos índios Cariris, residente em Juazeiro, recusa-se a morar em Crato, temendo a vingança da Pedra da Batateira. Padre Cícero Romão Batista, filho de Crato, certamente, na infância, deve ter guardado estórias ouvidas que o induziram a desenvolver, mais tarde, como sacerdote, o culto a Nossa Senhora com a invocação de Mãe das Dores.
Por isso é que o poeta João Cristo-Rei, com ares de profeta, anuncia que, quando se sucederem esses fatos lendários:
“Juazeiro fica trancado e seguro
Cercado de muro sem contradição,
Seu grande mistério se estende e cresce
E nisto aparece o Rio Jordão”
Sempre a força mítica da lenda das águas. E este novo tempo, preconizado pelo poeta, tem a mesma visão do profeta Isaías “com uma nova era de mel e fartura, quando pedra será pão, e o mundo viverá do Belo Amor entre os homens”. É certo o que diz a sabedoria multissecular da gente simples: “Deus fala pela boca do povo”. Pesquisas científicas atestam, que há milhões de anos, todo o Ceará, que é murado pelos contrafortes das serras, já foi mar, e um cataclismo telúrico determinou a depressão geológica de que temos o documento sedimentário dos fósseis encontrados no sopé da Chapada do Araripe, e as marcas da erosão nas rochas graníticas e faldas das montanhas, ao embate das ondas revoltas do mar. Podemos concluir parafraseando Shakespeare: “O povo sabe muito mais do que a nossa vã filosofia”.
(*) Rosemberg Cariri é cineasta. O texto foi extraído do livro “Eu Sou a Mãe do Belo Amor”, do Padre Antônio Vieira, publicado pela IOCE, Imprensa Oficial do Ceará. Fortaleza, 1988.