Personalidade contraditória, Lampião não foi, embora tenha sido pintado dessa forma, inclusive pelos prestigiados jornais "The New York Times" e "Paris Soir", um bandido social. Apesar disso, pesquisadores como Antonio Amaury Corrêa de Araújo, autor de seis livros sobre o cangaço, afirmam que ele teve, algumas vezes, atitudes de Robin Hood, ao dividir o produto de seus saques com a população carente. Ao mesmo tempo em que agia assim, o cangaceiro celebrava acordos espúrios com os reacionários coronéis nordestinos.
Capitão do exército e interventor federal em Alagoas, quando Lampião ainda estava vivo, Eronildes de Carvalho, acusado de fornecer armas e munição modernas ao bandoleiro, foi um dos seus mais notórios defensores. Na Paraíba, Lampião contava com o providencial apoio do coronel José Pereira, personagem central da Revolução de 30, com quem posteriormente se indispôs. Em Alagoas, o cangaceiro também podia ficar tranqüilo. Era protegido por membros da família Malta, antepassados da ex-primeira-dama Rosane Collor de Mello, que davam excelente cobertura a Lampião. Em troca de tanta "generosidade", os cangaceiros eram usados na política local, protegendo coronéis e suas fazendas e, em alguns casos, eliminando adversários incômodos.
Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello, um dos grandes especialistas brasileiros no assunto, o fenômeno do cangaço é resultado da colonização violenta e do isolamento cultural do sertão, região semi-árida que corresponde a 49% do território nordestino. "Os homens que colonizaram o sertão, terra ignota até metade do século passado, foram os rudes soldados que derrotaram o poderoso exército holandês da época, negros vindos das minas do sul e bandeirantes paulistas que mal falavam o português. Ao chegar, defrontaram-se com os índios tapuias, que, ao contrário dos mansos tupis do litoral, eram bravos e sanguinários. O choque desses dois grupos só poderia gerar uma raça habituada ao cheiro de sangue", sustenta o pesquisador, que tem um punhal de prata, com detalhes em ouro, que pertenceu a Lampião.
Em alguns momentos, a violência da figura do cangaceiro e o poder de persuasão do líder religioso, outro personagem importantíssimo do sertão, se aproximam. Exemplo típico é a Guerra de Canudos, na qual multidões de sertanejos, entre eles temíveis bandidos vindos das lavras de diamante de Lençóis (BA), reuniram-se em torno do beato Antônio Conselheiro. Aproximações semelhantes ocorreram também com Lampião. Em Juazeiro do Norte (CE), em 1926, o líder messiânico padre Cícero, que já enfeixava considerável poder político, ofereceu, para espanto de autoridades e militares, o título de capitão dos Batalhões Patrióticos ao cangaceiro para que ele enfrentasse um inimigo muito mais temido pelos coronéis: a Coluna Prestes, que circulava pela região. O bandoleiro teve apenas algumas escaramuças com patrulhas do Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes.
Em 1927, após ser derrotado em Mossoró (RN), Lampião cruzou o rio São Francisco e internou-se na Bahia, justamente no Raso da Catarina, área onde atuara Antônio Conselheiro. Grandes guerreiros de Canudos, Pajeú e João Abade, sob cujo comando sertanejos derrotaram três expedições militares, usaram em seus combates táticas de guerrilha semelhantes às que viriam a ser usadas pelos cangaceiros de Lampião décadas depois. Ap
esar de ser um personagem arcaico, que usava patuás e rezas bravas característicos da religiosidade medieval, Lampião, cuja inteligência e bravura eram reconhecidas até pelos inimigos, utilizou vários ardis para se manter tanto tempo no cangaço. As táticas iam desde o suborno de comandantes de volantes até a conquista da simpatia e apoio da população com boas ações isoladas, como fazem, nos dias de hoje, os traficantes dos morros cariocas. "Conversei com vários ex-chefes de volantes que me confirmaram ter recebido dinheiro de Lampião para fugir ao combate", revela o pesquisador Antonio Amaury. Espremida entre os cangaceiros e a polícia, quase sempre tão brutal quanto os bandidos, a população civil não sabia a quem recorrer.
Lampião se sentia tão seguro do seu poder que, em 1925, chegou a mandar um telegrama ao governador de Pernambuco propondo que esse dominasse o estado até Arcoverde (então Rio Branco), enquanto ele governaria o sertão. Embora o fato tenha sido apenas uma brincadeira do Rei do Cangaço, dá uma idéia da sua certeza de impunidade ao atacar vilas do interior.
Polêmica
As comemorações pelo centenário de Lampião e a proposta, aprovada por unanimidade pela Câmara de Triunfo (PE), de construção de uma estátua em homenagem ao cangaceiro dois metros mais alta que o Cristo Redentor serviram para reacender antigos rancores. Um dos mais tenazes inimigos do bandoleiro, Davi Jurubeba passou oito anos perseguindo os cangaceiros na caatinga e se irrita à simples menção da idéia. "Lampião foi um bandido cruel e estuprador. Como podem querer homenagear alguém como ele?", pergunta Jurubeba, que perdeu 17 parentes nas mãos dos cangaceiros. O pernambucano, que garante jamais ter fugido dos bandidos, jura que, se fosse mais jovem, impediria a construção do monumento. Com certeza, obteria sucesso. Quem teria coragem de contrariar o homem que jamais fugiu de Lampião?
Filho de João Bezerra, o comandante da volante que matou o Rei do Cangaço, o administrador de empresas Paulo Brito, acredita que há uma tentativa de transformar Lampião em um herói. "Reconheço sua valentia, mas ele foi um bandido, que jamais poderia servir de exemplo para ninguém", diz ele, que já hospedou em sua casa, em Recife, Vera Ferreira, neta do bandoleiro. Brito lembra que seu pai, apelidado de Cão Coxo pelos cangaceiros, admirava Lampião, que também o respeitava, apesar da inimizade de ambos.
Cangaceiros , como Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, e Manuel Dantas Loiola, o Candieiro, morador de Buíque (PE), participaram das homenagens na época; que, na opinião deles, estão corretas. Ambos escaparam da batalha de Angicos. Quando fugia sob cerrado tiroteio, Sila viu a amiga Enedina ser morta com um tiro na cabeça pelos soldados. "Em meus dois anos no cangaço, vi Lampião matar traidores e inimigos em combate, quando as chances são iguais para os dois lados, mas nunca tive notícias de que ele assassinasse inocentes ou desrespeitasse famílias", afirma.
Hoje um pacato comerciante, Candieiro, anos atras se encontrou, no local do massacre, com o velho inimigo Panta de Godoy, matador de Maria Bonita, lembra que Lampião aparentava estar cansado das lutas no sertão. "Ele dizia que só brigava se estivesse num apuro muito grande e não tivesse outro jeito", revela. Vera Ferreira diz ver o avô famoso como um homem que não podia agir de outra forma diante das circunstâncias que o levaram ao cangaço. O pai, José Ferreira, foi morto pelo delegado Amarílio Vilar, inimigo de Lampião. "Ele não foi herói nem bandido. Foi um homem valente, que, junto com seus cangaceiros, enfrentou a injusta ordem social vigente. Se não fizesse isso, seria um omisso, como tantos da época", afirma.
- O matador de Lampião, João Bezerra, morto em 1970, tinha, curiosamente, uma trajetória muito semelhante à de sua vítima. Acusado de ter sido um dos fornecedores de armas aos cangaceiros, Bezerra, entre outras coincidências, nasceu no mesmo dia e ano de Lampião.
- Apesar de ter vivido tanto tempo no cangaço, em alguns casos exterminando famílias inteiras, como os Gilo e os Quirino, Lampião jamais conseguiu matar Zé Saturnino, seu primeiro grande inimigo, e Zé Lucena, responsável indireto pela morte de seu pai, e pela sua própria, como comandante de João Bezerra.
Moacir Assunção
Fonte:http://www.sescsp.org.br