Por Gabriel Cohn
Que algo não vai bem nas políticas da cultura é fora de dúvida. Nunca, desde o período Collor, a política oficial na área foi tão contestada, e por tantos lados. Surpreendentes lados, além do mais. Históricos e respeitáveis militantes petistas fazem críticas contundentes, enquanto figuras conhecidas no campo cultural se alinham a encarniçados conservadores na defesa de uma ministra do PT. Tentemos propor o problema de fundo numa perspectiva ampla, ainda que à custa de rodeios necessários.
Fazer política cultural nunca foi fácil. Quando não se tem uma concepção clara das relações entre sociedade, Estado e cultura fica ainda mais difícil. A questão desagradável é: como juntar esses três termos sem fazer violência a nenhum deles? Pior: sem fazer violência à cultura, o elo frágil nessa cadeia? Mas qual intervenção na cultura não lhe faz violência? Eis o grande desafio de qualquer proposta séria de política cultural: mexer com essa coisa imponderável com a leveza sem a qual ela sufoca, junto com a firmeza suficiente para lhe dar força.
Cultura ou é tudo, uma espécie de atmosfera que respiramos nos menores gestos, ou é nada, porque cada vez que tentamos prendê-la numa das formas que assume ela nos escapa sob outra forma. Ou então, aprisionada nas redes administrativas, ela se converte em terreno bem demarcado no interior da produção e circulação simbólica. Essa última condição é que faz brilhar os olhos dos gestores mais apressados. Até porque desse modo ela pode ser definida, classificada e avaliada, mediante o uso de qualificativos: é popular, é nacional e assim por diante, tudo dependendo de quem tenha o poder de “ocupar o espaço” e de impor a sua definição.
Entre a cultura na sua acepção mais genérica possível (segundo a qual é nela que se dá a tradução no registro simbólico da vida humana, convertendo-a em experiências organizadas e peculiares a épocas e lugares) e suas expressões singulares bem mapeadas (a dança x na cidade y) há um enorme espaço, que se oferece às políticas.
A questão da formulação e implementação de políticas na área ganhou importância no Brasil com a criação do Ministério da Cultura em 1985 e assumiu forma constitucional a partir de 1988. Ao reservar-se todo um ministério a essa questão seguia-se um pouco o caso exemplar da França, que, no governo De Gaulle, consoante a vertente napoleônica da orientação republicana, criou em 1959 aquele órgão de difusão mundial da “grandeur” gaulesa. E fez questão de legitimá-lo na figura de um ministro grande intelectual, André Malraux. É verdade que isso se fez sem esquecer a frente interna, na qual viriam a se elaborar políticas inovadoras como a da “animação cultural”, cujas repercussões no Brasil merecem atenção.
Entre nós quem fez o papel de Malraux foi Celso Furtado, a quem se deve a concepção básica das leis de incentivo (batizadas na origem com o nome do então presidente Sarney, para depois se converter em Lei Rouanet) e, sobretudo, uma concepção abrangente da cultura como foco de políticas, centrada na ideia de criatividade. Depois disso, a rotina gerencial, mesmo quando competente, passou a se impor, como que dando razão àqueles que viam com reserva a própria criação do ministério.
Em 1984, quando se discutia essa criação, eu argumentava contra (“Cultura é cultura”, “Folha de S. Paulo”, outubro/1984), em termos que retomo agora. “A política cultural não segue a lógica da cultura – qual seria? -, mas a lógica da influência, do prestígio e do poder. Para isso ela cria suas instituições, seus gestores, seus funcionários, como condição para poder exercer-se. No limite, cria um ministério. A ideia da criação de um Ministério da Cultura não é, portanto, aberrante. Tem sua lógica, mas é uma lógica perversa. Ela repousa numa confusão que tem importância decisiva para entender como essas coisas se dão: aquela que no lugar do que é público coloca aquilo que é oficial. Enfim, aquela pela qual a clássica oposição liberal entre esfera pública e esfera privada fica sufocada nas malhas da esfera oficial, que acaba se identificando com a do aparato estatal”.
E concluía: “A cultura, essa entidade fugidia, tende a escapar por entre as malhas grossas das redes coletoras de recursos. Enquanto isso as redes mais finas podem ficar ociosas, dispersas pela sociedade, ou então continuar colhendo, à margem dos organismos e processos oficiais, sua sempre renovada carga simbólica. O risco é que elas fiquem restritas, confinadas em universos privados, talvez à espera dos possantes aspiradores da indústria cultural. O desafio continua o mesmo: articular o processo cultural com outros processos sociais e políticos, não para definir seu campo e suas prioridades oficiais, mas para o converter de fato em coisa pública, pois essa é no fundo a sua vocação. A cultura é entidade multiforme e intrometida e, tendo liberdade, nada lhe escapa. Porém, como ela não existe de maneira fixa e palpável, sua liberdade só se realiza juntamente com todas as outras liberdades. E isso passa, é claro, pelas condições materiais para exerce-las. Portanto, sua plena realização só se dá juntamente com todas as outras, num aprendizado social e político que certamente não passa por nenhum ministério”.
De passagem, interrogava se caberia àquele orgão “a regulamentação da concessão de canais de rádio e televisão, que atualmente está na área na qual se cruzam considerações tecnológicas com as de segurança nacional, sob o nome de “comunicações” (área, de resto, cuja sombra incide fortemente sobre o processo cultural)”. Nesse aspecto, convém lembrar que a antes citada França tem atualmente um Ministère de la Culture et de la Communication.
O dado importante, aqui, é que no período recente ocorreram mudanças que permitem pelo menos matizar aquelas reservas. A principal delas, claro, consiste no fortalecimento da sociedade nas suas relações com o Estado, que inclui o uso das novas tecnologias da comunicação. Avanço que se anunciou com força em certo momento e no entanto se revela vulnerável, como demonstra a situação presente na área cultural.
É fácil detectar o momento em que isso ganhou corpo. Foi na gestão Gilberto Gil-Juca Ferreira nos mandatos Lula, quando se adotaram políticas baseadas numa concepção ampla e generosa de cultura, de cunho antropológico, como então se proclamava (em contraste com concepções gerenciais-mercadológicas). Chamou-se a sociedade, criaram-se condições de participação mediante a associação em múltiplas redes, apostou-se no prazo mais longo para o aprendizado cultural, multiplicaram-se as formas de produção e distribuição.
Foi o brusco freio quando não reversão dessa tendência na atual gestão Ana de Hollanda que gerou o mal-estar manifestado em várias frentes, desde os participantes e produtores culturais atingidos por cancelamentos de projetos em andamento até amplos setores simpáticos a políticas nas quais reconheciam a marca das melhores vertentes democráticas. É por aí que se traça a linha divisória entre críticos e defensores da atual ministra. O que a vertente crítica não tem como aceitar é o retrocesso envolvido numa política tipo “o ministério dos artistas”, pois isso equivale em converter o MinC em agência de reconsagração daqueles já consagrados pelo mercado. Ou então a conversão do ministério em agência de policiamento da circulação cultural, em nome da defesa de direitos autorais (com tudo o que isso representa em termos de envolvimento com entidades privadas de organização e conduta nebulosa).
O Ministério da Cultura está aí para ficar, para o bem ou para o mal. (Perguntem a qualquer presidente se é fácil fechar um ministério, salvo pelo seu desdobramento em outros dois.) Houve momentos, recentes, em que ele veio para o bem. Caso persista a orientação que se vem imprimindo a ele na atual gestão, só restará sua face sombria, e os danos serão irreparáveis.
Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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