O processo de
licenciamento de Belo Monte, sua imposição e aceitação política, contém fatos
similares e já digeridos pela sociedade durante o também doloroso processo das
usinas do rio Madeira. Desde 1997 eu me dedico a analisar documentos oficiais
ou privados de projetos ligados ao setor elétrico e me impressiono como cresce
o descaramento das autoridades do governo ao apresentar justificativas falsas
para viabilizá-los.
Em 2011, acredito, tivemos a pior das demonstrações. Depois de
ter passado no teste de resistência da sociedade de engolir sapos, a licença
parcial de instalação inventada para apressar o início das obras da usina de
Jirau, no rio Madeira, caiu como uma luva no caso de Belo Monte. O cinismo foi
tanto que o Ibama nem se importou em “oficializar” a ilegalidade, pois contava
com um precedente.
Empresas e instituições públicas, prontas para abocanhar o
projeto da chamada terceira maior hidrelétrica do mundo, ignoraram solenemente
os impactos socioambientais e a sua corresponsabilidade. Passaram a ignorar
também o cumprimento das condicionantes da licença prévia. As terras indígenas
que sofrerão os principais impactos durante as obras e após a entrada em
operação da usina, não estão sendo consideradas como afetadas.
Etnocídio declarado.
Denúncias internacionais consistentes e embasadas tecnicamente
não faltaram. OEA, ONU, James Cameron, artistas, Schwarzenegger, Ministério
Público, Ongs, especialistas, cientistas, pesquisadores, desembargadora e até o
TCU, em uníssono, proclamaram aos quatro ventos erros técnicos, distorções de
custos, violações dos direitos humanos, corrupção instaurada para fazer as
obras, sobre preço, maracutaia no leilão. Do outro lado, defendendo Belo Monte,
estiveram o governo autoritário, seus asseclas e, lógico, as empreiteiras
prestidigitadoras e caçadoras de obras.
Ao longo do ano até apagão foi atribuído à falta de Belo Monte.
A questão de “tecnologia” da sucata nas linhas de transmissão, sequer tem sido
mencionada como provável causadora de apagões de eficiência que têm acontecido
no Brasil inteiro. Desperdício e mau uso dos encargos das contas de energia
administrados pela Eletrobrás são sempre varridos para debaixo do tapete dos
interesses políticos de coronéis do século XXI. Não me refiro apenas a Edison
Lobão e José Sarney. Já há outra máfia emergente no Congresso.
Biviany Rojas e Raul Silva Telles do Valle muito bem explicaram,
em um artigo, como Belo Monte ressurgiu das catacumbas do regime militar.
Verdadeira fênix colossal acobertando a miséria política em que vivemos hoje. A
palavra diálogo nunca foi tão proferida quanto neste ano miserável e de
desencanto para o meio ambiente, para as populações indígenas e para os
movimentos sociais. Sagraram-se vencedoras a falta de ética, a injustiça, a
mentira e a corrupção. Belo Monte simboliza isso tudo e muito mais.
Em abril o governo respondeu às recomendações da OEA sobre Belo
Monte numa atitude tão vergonhosa que chegou às raias da imoralidade. Os
licenciamentos de mentirinha de Belo Monte e de outras grandes hidrelétricas na
Amazônia continuaram ao longo do ano como se o Brasil fosse um país com justiça
social e com IDH top de linha.
O que dizer então sobre a Eletronorte, empresa estatal
majoritária no consórcio Norte Energia, responsável por Belo Monte? E sobre o
BNDES, que nem atende aos pedidos de informações da sociedade ou do MPF sobre o
financiamento do monstro do Xingu? Durante o ano escrevi muito sobre Belo Monte
e acredito que ainda vou escrever nos próximos anos, como faço até hoje sobre a
outra guerra, a das usinas do Madeira. Parece inesgotável.
Em maio fui convidada pela Associação para os Povos Ameaçados,
uma organização alemã com escritório na Suíça, para falar sobre Belo Monte em
Zurique, Berna e Basileia. Fiquei surpresa com uma pergunta recorrente depois das
minhas explicações sobre como o empreendimento afetará as terras indígenas e
como seus impactos não foram considerados nos estudos: “O seu governo não tem
conhecimento disso?” Eu gostaria de ter podido dar uma resposta melhor.
País rico é um país sem mentiras, esse deveria ser o slogan do
Brasil para figurar nas propagandas do governo que, aliás, estão atualmente
pipocando nas emissoras de TV. O caso de Belo Monte se mostrou uma das maiores
mentiras de Lula e Dilma. Por quê? Escolhas de ministros como as que fez Dilma,
escândalos como o mensalão do Lula ou acordos para repartir o “bolo” do poder
com boçais de plantão, podem dar as pistas.
Então, diante dessa mistura insana de mentiras e falcatruas que
envolveram a aceitação política de Belo Monte, ficou evidente que há esperança:
eis que cresce a figura heroica do procurador Felício Pontes Jr., do Ministério
Público Federal, que, no exercício do seu papel de fiscal da lei e defensor das
minorias, passou a ser perseguido pelo governo e seus “Pit Bulls”.
Em 2011, Felício Pontes Jr. foi incansável e se transformou no
maior exemplo de ética e de cumprimento do dever de que se tem notícia no caso
de Belo Monte. Mas a Advocacia Geral da União (AGU), a serviço do governo, foi
implacável. Felício fez um blog para explicar as ações contra Belo Monte e foi
processado; falou aos índios, foi processado; ajudou a elaborar cartilha de
resistência às usinas do Tapajós, foi processado; ajuizou muitas ações civis
públicas que questionam os processos de licenciamento das hidrelétricas, foi
processado; pediu a anulação das audiências públicas irregulares de Belo Monte,
foi processado.
Não me lembro de nenhum processo contra enriquecimento ilícito
de ministros do governo Dilma, também não me lembro de processos contra Silvio
Santos e a diretoria da Caixa no golpe do Panamericano, também não me lembro de
processos contra os prefeitos incompetentes das cidades fluminenses quase
alijadas do mapa, também não me lembro de processos contra a mamata
institucionalizada pelo prefeito Kassab com a Controlar da Camargo Corrêa para
inspecionar veículos em São Paulo, também não me lembro de processos contra
ONGs que se locupletaram com o dinheiro do ministério do trabalho, também não
me lembro de processo contra empresa do consórcio Norte Energia, habilitada no
leilão, que deu calote no mercado.
O governo, no entanto, continuou sua escalada de imoralidades ao
afirmar que o potencial hidrelétrico da Amazônia terá que ser todo explorado.
Afinal, para chegar a ser a quinta economia do mundo requer uma boa dose de
autoritarismo. Autoridades estufaram o peito para bradar como somos
privilegiados em relação ao resto do mundo ao dispor de fonte farta de energia
“limpa”. Energia limpa não destrói. Energia limpa não corrompe. Energia limpa
não viola direitos humanos. Energia limpa respeita o direito da Natureza.
Energia limpa é energia verde, aquela que o governo e o setor elétrico têm
ignorado sistematicamente porque não satisfaz interesses econômicos.
Até carta para a Dilma foi escrita pedindo para parar Belo
Monte. Ela não parou. Quando a presidente subiu a rampa para assumir seu posto
como chefe da nação foi imediatamente acometida de amnésia. Esqueceu suas
promessas e esqueceu-se de tirar lições dos erros do seu antecessor.
No meio do ano de 2011 o Ibama concedeu o “resto” da licença de
instalação para Belo Monte e o Brasil ficou de luto. A Aneel aproveitou para
“atualizar” uma planilha com mais de 100 hidrelétricas na Amazônia. Se o
projeto de Belo Monte conseguiu superar todos os “entraves” que a sociedade
civil e o MPF criaram, então o resto vai ser fácil, pensando cinicamente.
O juri popular do IV Festival Paulínia de Cinema premiou um
documentário sobre Belo Monte e as vozes que não foram consideradas nesse
processo de enfiar o projeto goela abaixo da sociedade. A mídia pouco divulgou,
mas ficou na gente um gostinho de vitória, embora simples, mas significativa
para alimentar a resistência e superar a estupefação da licença concedida.
Então veio o choque de ouvir o presidente do Ibama, Kurt Trennepohl,
dizer a uma jornalista australiana suas “impressões” racistas sobre os
indígenas do Xingu.
Embalados pela indignação e pelo alento da esperança de barrar o
destino começaram os protestos contra Belo Monte pelas cidades brasileiras. Nas
redes sociais o engajamento foi recorde para uma causa condenada pelo fato
consumado e pelo autoritarismo míope e extemporâneo de Dilma. Dilma, pare Belo
Monte, bradamos todos. Petições e tuitaços prenderam a atenção de jovens e não
tão jovens e mais gente foi para as ruas, de norte a sul do Brasil, pintada com
as cores do Xingu, entoando os cantos do Xingu.
A obra teve início. Atores e atrizes juntaram suas vozes em um
vídeo que não tinha a pretensão de ser um tratado técnico sobre Belo Monte, mas
que acabou sendo despedaçado por alguns estudantes, marionetes de gente
inescrupulosa. Que pena. Esses jovens poderiam ter procurado conhecimento em
lugar de depredar uma causa nobre. Ironizaram covardemente gente do bem.
Jovens da Amazônia entraram na briga, deram o troco e um lindo
recado: respeitem o direito do rio Xingu à vida. A jovem cientista ao receber o
prêmio das mãos de Dilma, também deu o seu recado. Outro grupo foi até
Brasília para levar assinaturas contra Belo Monte. Em vão. Fato consumado
e ponto final, foi a resposta dos ministros do Meio Ambiente, Izabella
Teixeira, da Secretaria Geral, Gilberto Carvalho e de Minas e Energia, Edison
Lobão.
Final do ano e, como foi prognosticado, o caos chegou a Altamira
e região. Aumento da migração, do desmatamento, dos preços e da violência.
População urbana e ribeirinha em processo de desalojamento compulsório,
indígenas inseguros e desrespeitados, condicionantes não cumpridas, governo
local decepcionado, governo estadual indignado diante de acordos não honrados
pelo consórcio. A realidade é que chegou.
Telma Monteiro
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