Duas leis municipais e uma lei estadual publicadas desde a última sexta-feira (6/7) no Rio de Janeiro elevam o patamar de três itens tipicamente brasileiros no hall do patrimônio cultural fluminense: o conjunto de patrimônio cultural e ambiental da zona sul carioca; o clássico Fla-Flu e respectivas torcidas; e a cachaça.
Pode ser um reconhecimento, justo, da cultura popular, mas pode ser ainda uma tentativa de cristalizar uma imagem de um Rio de Janeiro ideal, cidade modelo para os mega-eventos, na qual os preços dos aluguéis disparam e a população, da qual brotaram estas e outras manifestações, passa a largo. Mas vamos aos “fatos”, antes que esfriem.
Na sexta-feira uma série de decretos no Diário Municipal, encabeçada pelo decreto 35879/2012 estabeleceu o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão que passará a gerir as Áreas de Proteção da Ambiência Cultural (APACs) na capital fluminense, e instituiu novas áreas, protegendo do Corcovado ao Parque do Flamengo, no que é hoje a região mais valorizada da cidade, ao menos do ponto de vista imobiliário.
Ícones como a Praça Tiradentes e o bairro da Lapa também tem os benefícios do programa, um pacote de incentivo à conservação do mobiliário urbano, assim como um ordenamento às mudanças nestas regiões. Junto com a responsabilidade, aportes virtuais, com a criação do Fundo Municipal de Conservação do Patrimônio Cultural, que receberá dotação orçamentária da prefeitura e cobrará por eventos nas áreas, entre elas a orla de Copacabana, e reais, com o deslocamento do Fundo Especial Projeto Tiradentes, que fechou 2011 com mais de R$ 300 mil em caixa, da secretaria de cultura para o Gabinete do prefeito.
Da pasta da Cultura também saiu a subsecretaria de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design, com seu gerente, o arquiteto Washington Fajardo, junto, tornando-se a pasta no Instituto. O cargo recém criado substitui o secretário de cultura no conselho que gere o Fundo Tiradentes (Decreto 35880).
O instituto deverá apresentar ainda, junto com a secretaria municipal de Conservação e Serviços Públicos, uma “proposta para reforçar as medidas de combate à degradação da paisagem carioca”.
O decreto 35877/2012 e o de número 35878/2012 declaram, respectivamente, como Patrimônio Cultural Carioca “as torcidas dos clubes de futebol da Cidade do Rio de Janeiro” e “a partida de futebol Fla-Flu”. Para tal os argumentos, registrados na forma de Lei, dão conta de serem as torcidas cariocas, além de uma tradição, um “atributo estético universal”, o que garante sua inscrição “como Bem Cultural de Natureza Imaterial no Livro de Registro das Atividades e Celebrações”.
Quanto ao derby máximo fluminense, “é uma celebração que sintetiza a identidade carioca e signo máximo do saudável antagonismo esportivo”, sobre o qual há “distintas manifestações artísticas e culturais que fazem referência à partida como atributo estético universal, como bem sintetizou o jornalista e escritor Nelson Rodrigues na máxima: ‘O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada’ ”, o que garante seu registro como “Forma de Expressão da sociedade carioca”.
A título de curiosidade, a torcida do Flamengo é bem imaterial desde 4 de Dezembro de 2007. Ambas as propostas passaram pelo crivo do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural.
Por último, mas não menos importante, o decreto publicado no Diário Oficial Estadual hoje, que “Considera a Cachaça como Patrimônio Histórico Cultural do Estado do Rio de Janeiro”. Este decreto, vindo da augusta casa estadual de leis, foi legado à posteridade assim a seco mesmo. Sem preâmbulo, justificativas, floreios. De uma só tacada (ou golada). Segundo justificativa do proponente, o deputado Luiz Martins (PDT), publicada na página da ALERJ, “Todos os países têm a sua bebida. A Escócia tem o uísque, o México tem a tequila, Cuba o rum… A cachaça é produzida desde a colonização e hoje, aqui no estado, temos uma cachaça maravilhosa, que é a de Paraty. Valorizando o nosso produto estamos valorizando a empregabilidade dessa produção e, também, a nossa cultura”.
Não sou nenhum especialista em legislação, mas não me parece matéria inédita – a patrimonialização da branquinha tem recebido alguma atenção já há uns dois anos, ao menos.
O reconhecimento, certamente eivado de interesses mercadológicos de produtores e amantes, não é forma de tentar dar sobrevida a cachaça e ao conjunto arquitetônico carioca, e mesmo o Fla-Flu não parece em nada ameaçado – eventualmente por um rebaixamento, mas, como o Fluminense já provou, não se trata de nada que seja permanente.
Embora o conjunto arquitetônico receba pressão imobiliária e a cachaça possa ser substituída ou perder espaço para versões etílicas mais industrializadas, parece muito mais um esforço de garantir a permanência de um jeito de ser carioca – do carioca do botequim, que bebe sua cachaça, fala de futebol e passeia pelo centro da cidade, em meio aos prédios históricos e conversando com doutores e outros malandros.
Só não há como manter o personagem principal deste quadro – o malandro em pessoa, expulso pouco a pouco do centro pela especulação ou pela violência, e dos bares e restaurantes pelo aumento dos preços. Afinal, como já disse Chico Buarque, há um bom tempo “Mas o malandro para valer, não espalha,/ aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal./ Dizem as más línguas que ele até trabalha,/Mora lá longe chacoalha, no trem da central”.
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Morador do Campo Limpo (Zona Sul de São Paulo), é jornalista e mestre em comunicação, além de pesquisador no núcleo Alterjor, da ECA/USP. Para mais artigos deste autor clique aqui.
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